Pílulas ideológicas – depois do marxismo

O colapso do marxismo significa que a direita venceu, que a injustiça é inamovível, que a ausência de uma utopia partilhada nos impede de lutar pela liberdade e pela solidariedade? Não me parece. Parece-me que teremos de aprender a lutar pelo que consideramos justo, sem saber nem querer saber se isso cabe numa ideia predeterminada do futuro.

Há muito tempo que preocupa o problema de descobrir uma nova política para a esquerda, após o fim do marxismo. Bem sei que muitos não me acompanham no passar desta certidão de óbito, mas para mim o óbito é evidente.

A questão decisiva é a previsão que o marxismo fazia sobre a história, que dava todo o sentido à luta dos militantes e uma perspectiva de esperança aos oprimidos. O marxismo afirmava que ao modo de produção capitalista se seguiria o modo de produção comunista, com a eventual transição pelo socialismo, com a colectivização dos meios de produção, uma distribuição igualitária da riqueza, a planificação central da economia e, eventualmente, a própria dissolução do estado.

Validando aparentemente a teoria, as revoluções tiveram lugar, os comunistas tomaram o poder e tentaram implementar estas ideias num grupo de países que chegou, a certa altura, a abranger uma parte importante da Humanidade.

Se considerarmos a superioridade manifesta demonstrada pelo capitalismo em comparação com as sociedades feudais e aristocráticas que o antecederam e extrapolarmos essa diferença para o que se podia esperar do socialismo ou do comunismo, desde logo a nova organização social se deveria revelar superior, mais eficiente, mais aberta, mais democrática e mais criativa.

Em lugar nenhum as promessas da teoria foram cumpridas. As primeiras tentativas de democracia de base foram rapidamente esvaziadas e impôs-se em todos os casos uma brutal ditadura do partido, com polícia política, esbirros, detenções arbitrárias, tortura, deportações, assassínios em massa, campos de trabalho escravo e em muitos lugares genocídio.

Do ponto de vista económico a nova economia mostrou-se sempre menos eficiente que o sistema que procurava substituir. O sistema de planeamento central da economia revelou-se pesado, esbanjador de recursos, sujeito a erros monumentais difíceis de corrigir, extremamente conservador e quase nada criativo. Além disso, era muito pouco eficiente na gestão da informação, com os planeadores em certas alturas desprovidos de informação sobre o sistema, visto que toda a gente mentia.

Estas sociedades foram-se arrastando penosamente, exigindo para subsistir sacrifícios terríveis aos seus cidadãos, até ao momento em que o velho sistema capitalista, que pela teoria seria incapaz de se renovar, se renovou mesmo, com as novas tecnologias da informação que impunham a liberdade da sua circulação e uma grande abertura social como condição da eficiência económica.

As sociedades fechadas dominadas pelos partidos comunistas não podiam competir neste campo. Qualquer tentativa de abertura arriscava o colapso dos regimes e a manutenção do fechamento levava à sua ruína económica.

Depois da ruína dos sistemas de economia planificada, seria de esperar que a esquerda fizesse um balanço deste falhanço histórico estrondoso. Não foi isso que aconteceu. Em poucos lugares os partidos comunistas subsistiram como partidos reivindicativos, recusando-se a discutir a sua proposta política a longo prazo; noutros a esquerda atomizou-se, entre os partidos socialistas ou social-democratas (no sentido europeu) cuja política pouco se distingue dos partidos do centro e vários movimentos radicais de perspectivas políticas muito confusas.

Para muitos activistas e cidadãos a ideia de que as suas esperanças se goraram e o socialismo ou comunismo não tem lugar no futuro é intolerável. Desistir do socialismo ou do comunismo seria dar razão à direita. Esperam que novas revoluções no século XXI tornem possível o que soçobrou pelas suas próprias deficiências no século XX.

Assim o marxismo se transformou (ou já era há muito) numa religião. Como em qualquer outra religião, é preciso manter a fé, mesmo que todas as evidências apontem o seu erro, porque se se perder a fé está-se a comprometer a vinda do Advento revolucionário que nos há-de libertar a todos. Triste destino para uma filosofia que começou por se proclamar científica e durante algum tempo foi esperança para movimentos de progresso.

O problema do partido

Uma questão sempre relacionada com o marxismo é o problema do partido. O partido seria essencial para a luta política. Os movimentos operários criaram nos séculos XIX e XX dois tipos de partidos, ou os partidos social-democratas de massas, de políticas reformistas e que acabaram todos eles no conformismo mais completo, ou os partidos revolucionários leninistas, ditatoriais, intolerantes e, sempre que o conseguiram, criadores de ditaduras terríveis. Portanto, o sucesso dos partidos marxistas ou de base marxista não é brilhante.

Em vez de ajudar a luta da esquerda, os seus partidos tornaram-se quase sempre obstáculos, porventura necessários e indispensáveis nas condições em que viviam os oprimidos nos séculos XIX e XX. Hoje a informação anda mais difusa e creio que hoje as possibilidades de ação transcendem em muito os partidos, inclusive em possibilidades de coordenação internacional.

Acredito mais em movimentos de cidadania, sem programa obrigatório ou fixo mas concordantes em ações  políticas determinadas por uma moral partilhada. Acredito ainda que será mais eficiente para esses movimentos pressionar os aparelhos políticos, nalguns casos de uma posição radical, do que tentarem tomar o poder. Então não se toma o poder? — perguntarão os meus amigos habituados ao esquema marxista. Não sei, não faço ideia, para já não.

Temos que nos habituar a pensar numa sociedade aberta, caótica, criativa e sem destinos predeterminados.

Um partido não é, de resto, o melhor instrumento para um aspecto da luta política perfeitamente decisivo hoje em dia, os media e a necessidade de romper o controlo das mensagens por parte das elites. Sobre isto tenho que voltar a escrever.

Perspectivas

O colapso do marxismo significa que a direita venceu, que a injustiça é inamovível, que a ausência de uma utopia partilhada nos impede de lutar pela liberdade e pela solidariedade? Não me parece. Parece-me que teremos de aprender a lutar pelo que consideramos justo, sem saber nem querer saber se isso cabe numa ideia predeterminada do futuro.

Por não termos essa ideia predeterminada do que vai acontecer no futuro, não temos que aceitar a lógica neoliberal. Para já, na essência o neoliberalismo que se nos apresenta é essencialmente uma construção propagandística. A lógica neoliberal só funciona para acólitos entusiastas. Para quem toma as decisões importantes, outras lógicas mais prosaicas tomam primazia: a diplomacia das canhoneiras, os negócios monopolistas com os estados nacionais imperialistas, os mercados guardados a ferro e fogo, os mercados dos concorrentes devassados com o auxílio de bombardeiros, condições associadas a empréstimos, corrupção ou até campanhas de persuasão neoliberal.

O mercado é realmente muito mais eficiente do que a economia planificada, mas a sua eficiência existe dentro de limites estreitos. Demasiado amordaçado, estiolará, levando à estagnação; demasiado solto leva a injustiças inaceitáveis, aos monopólios e à aquisição por estes de demasiado poder político para poderem ser controlados pelos cidadãos, o que, como todos sabemos, é o que aconteceu em todo o mundo.

Toda a nossa vida é assim. Ao guiar o carro, sabemos muito bem que, se não acelerarmos, não andamos, mas se acelerarmos de mais acabamos por ter um acidente. Se um teórico neoliberal da condução nos dissesse que bastava acelerar a fundo e que as leis da física nos fariam sempre chegar ao destino, que lhe chamaríamos?

O que é justo é correcto, o que é injusto é inaceitável. Teorias económicas sempre houve, quase sempre de alcance limitado e muito interesseiras.

É evidente que as possibilidades materiais e os recursos que temos nos permitiriam viver muito melhor. É evidente que se podia, quase de um momento para o outro, acabar com a miséria.

É evidente que as ações hoje necessárias para salvar o nosso habitat local e planetário não se compadecem com a lógica neoliberal nem com a muito mais sólida e deliberada lógica imperialista.

Economistas muito bem preparados dir-nos-ão que isso é impossível, por causa deste ou daquele mecanismo do mercado. Não vamos querer saber disso. Vamos simplesmente lutar pelo que está certo. O que molda a sociedade são as ações dos seus membros. A nossa vida está cheia de conquistas sociais que os ideólogos de serviço na altura disseram que eram impossíveis.

Essa luta adquirirá, assim, um carácter essencialmente moral. Sabemos perfeitamente o que está errado e o que está certo. Então vamos tratar de impor o que está certo. É tão simples como isso.

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