Politicamente correto

O Bloco de Esquerda parece tar dado um faux pas ao propor um nome sem indicação de género para o Cartão de Cidadão. Não porque a proposta seja incorreta, na minha opinião, mas porque é muito à frente para a maioria.

As lutas políticas à volta da gramática tiveram um curso muito limitado ainda no nosso país, mas é inevitável que cá cheguem. Entre os falantes de inglês já duram há muitos anos e não mostram sinais de abrandar.

A língua que falamos exprime naturalmente as relações de poder das sociedades que a criaram. O facto do masculino ser o género padrão, usado por defeito, exprime o passado e o presente patriarcal das nossas sociedades. Não é uma caraterística só da língua portuguesa, mas foi herdada há muitos séculos das línguas suas antecessoras.

Abundam nas redes as demonstrações de indignação contra o politicamente correto. Muitos sentem-se ameaçados no conforto dos seus hábitos mentais, até quiçá das suas identidades, pelas propostas de inovação linguística, irritantes e estultas.

Se formos olhar para a história da nossa língua (e nisto eu sou um perfeito amador, sem formação superior no assunto) encontramos fascinantes evoluções precisamente nos pontos relacionados com a expressão do poder. Havia, na Idade Média e pelo menos até às revoluções liberais, uma forma de tratar os poderosos na terceira pessoa plural ("Vós sois...") e outra forma sem cerimónia, para os poderosos se dirigiram aos da ralé ou para a ralé se tratar entre si ("Tu és").

Com a democratização progressiva da sociedade o uso da segunda pessoa plural caiu em desuso e surgiu uma forma intermédia, o uso da terceira pessoa singular, correspondente ao respeitável burguês ("Você é"), mantendo-se o tu para as formas não respeitosas de diálogo. Imagino que alguns dos literatos conservadores tenham protestado, indignados com a inovação e clamando contra a falta de respeito que se instalava.

Do mesmo modo, o uso de patronímicos pejorativos (mouros, ciganos, pretos) caiu em desuso ou foi censurado, à medida que a sociedade se tornava um pouco mais aberta e inclusiva.

É caraterístico de quem está numa posição privilegiada não sentir a opressão. Assim, sempre que alguma destas inovações teve lugar, houve quem protestasse, alegasse tratar-se de um preciosismo sem interesse, mas sempre incomodado com o esforço de cuidar da forma de tratar os outros. Assim, um branco não se sentia em geral ofendido por falar em mouros, ciganos e pretos. Quanto às pessoas referidas dessas formas desrespeitosas, já é uma outra questão.

Muitos dos conceitos usados nestas discussões correm em paralelo entre feministas e anti-racistas.

Quanto ao género, há já alguns anos que quem defende a igualdade de direitos da mulher levanta estes problemas linguísticos, sobretudo entre os falantes de língua inglesa. Entre as mentes mais progressivas, tornou-se hábito, por exemplo, referir uma pessoa indeterminada como she em vez de he, usar o pronome hesh em vez de he ou she, ou mesmo o plural they como singular de género indeterminado. Isto porque entretanto a questão complicou-se com uma discussão inclusiva dos géneros não binários ou fluidos.

A discussão será mais acesa entre nós, porque nas línguas descendentes do latim vulgar, como o português, nem sequer há o género neutro nas palavras. Tudo é completamente binário.

Sendo eu parte do grupo privilegiado, sinto que não me compete opinar de forma paternalista sobre o que é ou não ofensa para os grupos oprimidos. Neste caso do género por defeito, é claro que, à partida, me sinto confortável por esse género padrão ser o meu. Cabe-me sim, como possuidor de uma consciência progressiva, ouvir com atenção e considerar com respeito o que as mulheres têm a dizer sobre o assunto.

Se mudar a gramática for condição necessária para haver mais respeito e mais justiça, pois que se mude a gramática!

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