Jesus não pode ser o único Filho de Deus

Mesmo que provavelmente nunca encontremos* os nossos congéneres, devido ao tamanho descomunal do espaço-tempo e à brevidade das nossas vidas, essas culturas decerto existem, existiram e hão-de existir. Não precisam todos esses seres de ser salvos?

A civilização de insetos de Aldebaran IV, da constelação do Touro, a 65 anos-luz daqui, teve ou terá, como o nosso planeta, a visita de um Filho de Deus, na forma de inseto consciente (os seres desse planeta não serão bem insetos, mas vamos chamá-los por esse nome, porque se parecem). O Jesus Inseto não será talvez crucificado, mas terá outra morte horrível correspondente aos usos e costumes dessa cultura.

Os polvos inteligentes de Vega XVI, na Lira, distantes 25 anos-luz, também terão acesso à mensagem de salvação, a uma visita do Filho de Deus Jesus Polvo, o qual, mais uma vez, talvez não tenha como destino a cruz, mas os tormentos particulares dessa civilização de polvos.

Mais normal será o Jesus dos símios verdes de Mintaka VII ou Delta Orionis, uma das Três Marias de Orion, bastante mais longe, a 900 anos-luz. Mas a crucificação não funciona com eles, já que, ao contrário do Homo Sapiens terrestre, podem subir às árvores, postes e edifícios com grande desembaraço. Decerto inventaram formas próprias, igualmente cruéis, de se torturarem e assassinarem uns aos outros.

Por toda essa nossa Via Láctea, há-de haver milhões de sóis que brilham, em estranhos cumprimentos de onda, para raças de muitas formas, mas capazes de consciência e, por isso, também necessitadas da salvação. Mas a nossa galáxia é apenas uma. Por todo o Universo, há galáxias em maior número que os grãos de areia numa praia terrestre.

Os Filhos de Deus serão então muitos milhões, biliões, triliões...

E a Paixão de Cristo está então a repetir-se constantemente pelo Cosmos, pois as histórias dessas culturas não acontecem, naturalmente, ao mesmo tempo. Algumas começaram bem antes de nós, outras são nossas contemporâneas — mais milhão menos milhão de anos — outras ainda nem sequer começaram. Para muitas futuras civilizações, os sistemas solares que lhes servirão de casa ainda estão a coalescer da poeira cósmica. Terá havido culturas das quais já desapareceram até as galáxias em que viveram.

Deus Pai há-de ter assim multidões de filhos, que nem uma abelha-mestra cósmica. E o ofício de Jesus Cristo há-de ser um trabalho a tempo inteiro per omnia secula seculorum.

Talvez toda essa miríade de Jesuses seja um só, uma pessoa múltipla espalhada pelo espaço-tempo, mas não lhe invejo a sorte se o seu ofício é sofrer torturas e mortes múltiplas de formas estranhas e originais, mas sempre muito desagradáveis.


Podem dizer que eu, sendo ateu, não tenho o direito de intrometer-me na teologia cristã. Mas a verdade é que estou apenas a ajudar os cristãos, pensando nas consequências de aplicar uma narrativa de há dois mil anos — de quando quase nada se sabia sobre o mundo — ao tempo atual, com a consciência que hoje temos da espantosa extensão, idade e diversidade do Universo.

É bom que os cristãos pensem nisto, aconselho eu (mas podem não querer pensar no assunto, pois também têm esse direito).



* Sobre uma ideia de Umberto Eco, no romance "A Ilha do Dia Antes". [Voltar ao topo]

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